13 de maio de 2018

Lacan Cotidiano 773: "Famílias, questões cruciais", por Hélène Bonnaud e Diálogo sobre o filme "Signer", por Nurith Aviv e Éric Laurent





O que há de novo sobre o casamento?
“Famílias, questões cruciais”, a crônica de Hélène Bonnaud

Enquanto se comemora o quinto aniversário da lei sobre o casamento para todos, aprovada em 23 de abril de 2013, que abriu o direito ao casamento e à adoção para pessoas do mesmo sexo, muitos relatórios da imprensa indicam que ela já está plenamente adotada pelos franceses. Esse progresso mostra definitivamente que uma lei pode agir e abrir amplamente os espíritos para uma nova concepção de sociedade. De acordo com várias pesquisas recentes, os franceses consideram que não há diferença entre casais homos e heteros. "60% apóiam a abertura da PMA[i] para mulheres em casais homossexuais, assim como para mulheres solteiras. Ainda mais surpreendente, 55% deles também são favoráveis à gestação por mães substitutas. Uma revolução de mentalidades, no país das reticências éticas e do medo de qualquer mercantilização da procriação"(1), relata L'Obs.

Os novos casais homossexuais, por sua vez, estão satisfeitos e reconhecem que essa legalização lhes permitiu uma melhor inserção no tecido social. Não há mais necessidade de se esconderem ou de inventarem vidas paralelas, a lei dá uma permissão que mudou a relação de cada um com a sua homossexualidade. No passado vivida como uma maldição ou um sintoma que tinha que ser normalizado ou aceito, ela agora é sentida como uma condição da sua sexualidade. Este impacto do reconhecimento através da legalização definitivamente pôs fim a qualquer concepção da homossexualidade como patologia ou transgressão.

Basear-se na leitura proporcionda pela tábua da sexuação de Lacan (2), permite não confundir sexo e orientação sexual. No entanto, cada um de nós é tomado pelas construções e ideais do seu tempo e alguns psicanalistas nem sempre escaparam aos discursos estabelecidos. Isso mostra que a tese de Lacan sobre a relação sexual que não existe (3) estava muito à frente de seu tempo.

A lei sobre o casamento para todos veio indicar que uma evolução estava em curso e cinco anos depois as várias pesquisas confirmaram isso. Segundo Irene Théry, entrevistada pelo Le Monde, esse avanço está enraizado em uma mudança na concepção do casamento.

Antigamente, "até os anos 1970, o casamento impossibilitava a própria ideia de união entre pessoas do mesmo sexo, já que seu significado primário era ‘a presunção de paternidade’: sua razão de ser era dar um pai às crianças trazidas ao mundo pelas mulheres. Mas em 1972 a lei estabeleceu que as crianças nascidas fora do casamento teriam os mesmos direitos que os filhos ditos legítimos" (4). A partir de então, o casamento se separa da questão da paternidade. Ele concerne essencialmente a um laço de casal.

Renovação do casamento
O casamento homossexual, sem dúvida, devolveu uma certa vitalidade à instituição matrimonial, muitas vezes relegada a uma tradição ancestral pouco adaptada aos modos de vida atuais - muitos casais preferem o PACS[ii]. Não esqueçamos que as estatísticas (5) sobre divórcio mostram o fracasso mais ou menos esperado da vida de casal. Mesmo Jean d'Ormesson reconheceu no final de sua vida que, vivendo cada vez mais, parece incongruente ficar toda a vida com apenas uma mulher, mas, com seu humor de dândi, ele fez ainda assim a observação de que "o casamento, são quarenta anos ruins para atravessar e depois é excelente. A vida se torna deliciosa a partir dos sessenta anos "(6).

Para a maioria, sem diferenciar casais jovens e velhos, a separação está inscrita no ticket de entrada do casamento, mas também se tornou tão banal que podemos ignorá-lo ou dizer que o futuro sempre tem uma parte de surpresa, boa ou ruim. Vamos viver dia a dia.

Nossa época é marcada pela artificialidade dos laços e pela natureza efêmera de qualquer escolha. Nenhuma garantia, nenhuma verdade absoluta, nenhuma promessa eterna. A ordem simbólica do casamento persevera, mas sem sua dimensão religiosa ou moral. Resta a festa, já que o casamento continua sendo um momento em que as famílias e os amigos são convidados em torno do casal que se une para celebrar alegremente sua transição de solteiros para cônjuges, significante que não pode ser mais fora de moda, mas que mantém seu valor legal. Ao celebrar sua união, os homossexuais sentem que estão agora em pé de igualdade com os heteros e desfrutam plenamente deste passo social, que lhes dá um status de direito e reconhecimento que os liberta de séculos de retraimento, vergonha e exclusão.

Uma criança por quem, para quem, de quem?
No entanto, apesar desses avanços, a questão do filho permanece o desafio atual do direito de se tornarem pais para os casais homossexuais. De fato, François Hollande, em declarações recentes (7), lamenta não ter cumprido sua promessa de campanha de 2012 de autorizar que mulheres lésbicas e solteiras recorressem à PMA, forçando-as assim a ir para o exterior quando querem ter um filho.. Se ele recuou, foi por causa da virulência do movimento Manif para todos que se opôs ao casamento dos homossexuais e ao seu direito à adoção, e continua a militar contra toda concepção de filhos para os casais homos.

No entanto, do ponto de vista jurídico, os casais homossexuais têm os mesmos direitos que os casais heterossexuais. Resta o real da biologia que, para os primeiros, bloqueia qualquer possibilidade de gravidez sem a ajuda da ciência. Portanto, a decisão de abrir o PMA a todas as mulheres, independentemente de sua orientação sexual, é um ato político.

Hoje, enquanto se abrem esta semana os Estados Gerais da Bioética, que darão origem a muitos intercâmbios, conferências, debates e testemunhos sobre a questão da abertura do PMA a mulheres lésbicas e solteiras, os defensores do Manif para todos estão em pé de guerra, denunciando uma "PMA sem pai" (8).

Essa fórmula negativa é a expressão de uma posição irredutível quanto à supremacia do casal heterossexual, que, diga-se de passagem, não está próximo de desaparecer e permanece o modelo de todas as futuras formas parentais.

Ela se funda em uma crença inabalável na potência biológica da diferença entre os sexos. Ela se recusa a situar o desafio que é a paternidade além das atribuições estabelecidas para ambos os sexos. O padrão na forma de "um papai e uma mamãe para cada criança" continua sendo seu plano de ataque, não vendo que nada impede que essa estrutura funcione com outros determinantes lógicos.

Vamos admitir: ser pai ou mãe é algo que não se aprende. Você nunca sabe que pai ou que mãe você será. Mesmo quando as identificações mais certeiras são solidamente testadas, nada indica seu caráter automático e verificável. É isso que a clínica psicanalítica nos ensina. Ademais, para saber se seremos "o bom pai ou a boa mãe que queremos ser", continuamos a imaginar que ter um filho nos dirá isso...  A isso chamamos "o desejo de ter filhos" e está além das leis.

Tradução do Francês: Louise Lhullier

(1) DEFFONTAINES C., LEPAGE, E.», sur enquête L’Obs-BVA réalisée en février 2018, L’Obs, 14 de março de 2018, disponível aqui
(2) Cf. LACAN, Jacques, O Seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, lição de 13 de março de 1973.
(3 )Cf. LACAN, Jacques, Radiofonia (1970). IN: ____________, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003, p. 411.
(4) THÉRY, Irene, propos recueillis par Pommiers E., Le Monde, 23 avril 2018, disponível aqui
(5) 45% des couples divorcent, article disponível aqui
(6) D’ORMESSON, Jean, propos recueil Servat S., Gala, 5 décembre 1977, disponível aqui
(7) VANDEKERKHOVE, Ch., « Hollande regrette de ne pas avoir ouvert la PMA aux femmes célibataires et lesbiennes », bdfmtv.com, 23 avril 2018 disponível aqui
(8) “La PMA sans père, une question sociale”, 23 février 2018, www.lamanifpourtous

[i] Nota da tradutora: Procreation Médicalement Assistée / Reprodução Medicamente Assistida
[ii] Nota da tradutora: Pacte Civil de Solidarité, equivalente ao nosso contrato de união estável
 
 
 




Du signe
Diálogo sobre o filme «Signer» de Nurith Aviv
por Nurith Aviv e Éric Laurent

Éric Laurent — “Signer” [comunicar por sinais, N.T.] nos faz descobrir um mundo no qual há poucas janelas dessa qualidade. Essa janela contribui poderosamente para “ampliar nossa concepção de linguagens humanas”, tal como Nurith Aviv formula a intenção de seu filme.

Desde o início estamos imersos in medium res, no meio das coisas: com Emmanuelle Laborit, o título “Signer” se encarna; ela nos confronta com isso, que é o fato de se expressar por sinais através de um ato de tradução. A apresentação das diferentes maneiras de dizer “azul” através do planeta-signos é evidentemente uma magnífica entrada desse assunto na grande variedade de línguas de sinais. Ela me faz pensar no grande livro de Michel Pastoureau, “Azul: história de uma cor”, que nos deu acesso à variação histórica de toda a semântica do azul em nossa civilização. Ele nos mostrou também que, durante toda a antiguidade, permanecemos sem ver o azul. Graças à maneira como Emmanuelle Laborit se expressa por sinais, e àquela como N. Aviv a filma, descobrimos como cada signo “azul” está ligado a uma civilização. Tentamos adivinhar os liames que enodam esse sinal a um mundo profundo [interior, N.T.]. O azul do mar e o do céu do Mediterrâneo não é o azul dos japoneses e o dos chineses. A experiência do azul de cada cultura torna-se sensível, palpável.

Gozo da voz

É. Laurent - A maneira singular pela qual o olhar de N. Aviv se dirigiu acima é muito importante, pois ela nos faz descobrir algo, um objeto comovente: a voz do surdo. O olhar conta tanto quanto ele remete a um tratamento específico da voz. Esse filme revela um gozo da voz, do qual temos apenas uma ideia muito vaga: a voz dos surdos quando eles sinalizam – o que Gal ouviu atrás da porta quando seus avós e amigos sinalizaram. Ver esse som é a revelação de um acontecimento de corpo inaudito. É o fundamento pulsional da “cultura dos surdos”, da qual Gal fala de modo tão convincente. Descobrir isso é, ao mesmo tempo, desconfortável e fascinante.

Nurith Aviv — Várias coisas me ocorrem. Gal, quando fala com sua avó, diz que é do outro quarto que ele ouviu a sua voz e é isso que faz, para ele, a cena original não ser um olhar, mas uma voz.

Essa foi a minha decisão original de não substituir a voz dos surdos pela voz do tradutor. Essa decisão tinha claramente o objetivo de ouvir o som das vozes deles. Isso significava que, enquanto eu rodava a cena, não sabia o que eles diziam, porque não havia intérprete. O que foi mais trabalhado neste filme foi o som – passamos dez dias no estúdio trabalhando nele.

É. Laurent — Esse é o dispositivo que você nos fez compartilhar com a circulação dos iPads, ficamos presos no campo da disjunção entre a imagem e o som. O iPad é utilizado na família para apoiar a conversação por sinais e sua articulação aos sons. Essa voz dos surdos é um objeto incrível.

N. Aviv — Gostaria de fazer uma ópera com essas vozes.

É. Laurent — É um objeto perturbador. Sentimos isso. É, ao mesmo tempo, estranho e fascinante.

N. Aviv — Com o tempo, nos acostumamos.

É. Laurent — Podemos dizer que nos acostumamos, podemos dizer também que nos aprofundamos na estranheza. À medida que isso se torna mais familiar, torna-se também mais estranho. Está aí o tempo todo. Essa sonorização particular torna isso muito presente.

Banho de olhares

É. Laurent — Extraordinárias também são as conversas entre mães e filhas. Elas apresentam uma variedade de características ao mesmo tempo: ternura, cumplicidade, envolvimento, atenção. Uma mãe (surda de nascença) mostra à sua neta (que lá não está) o filme que ela fez, cativada, quando sua filha tinha apenas 10 meses: na presença e sob o olhar do pai (surdo), a criança aprende suas primeiras palavras, em sinais. Nós nos movemos entre esses olhares. Estamos imersos nesse banho de olhares, nesse modo de comunicar, que faz comunidade. Isso é ainda mais marcante que, na primeira geração, a avó (a única criança surda de sua família) lamenta não ter tido, nesse banho, a cumplicidade com sua própria mãe (não surda), pouco propensa a aprender a língua de sinais, não plenamente com sua filha, por não tê-la, ela mesma, praticado.

N. Aviv — É esse modo de fazer comunidade que vai inventar a linguagem israelense de sinais, que não existia no início.

É. Laurent — Há uma mistura de níveis de linguagem, desde a mais íntima conversa “intergeracional”, até o laboratório de línguas, presente em todos os seus filmes, o que nos leva ao encontro de linguistas absolutamente impressionantes.

N. Aviv — Tenho que te dizer, a primeira linguista que vemos no filme faleceu há um mês; estou triste por ela não estar mais entre nós e feliz por ela estar aí, presente no meu filme.

É. Laurent — A heterogeneidade dos níveis de língua se duplica sobre aquela dos lugares, em uma mistura não menos surpreendente. O encontro entre a boemia berlinense e a aldeia de Kafr Qasim particularmente.

N. Aviv — Sim, Daniel é alemão e vive em Berlim com Meyad, nascido em Kafr Qasim. Sua mãe é polonesa, seu pai é congolês; eles vieram para a Alemanha porque as escolas para surdos são melhores ali do que na Polônia.

É. Laurent — Durante essas viagens, esses encontros, inventa-se um grande uso de iPads, iPhones pelos seus atores-personagens. Diálogos de sinais por Skype ou FaceTime povoam o filme de telas abismais.

N. Aviv — Isso substitui as janelas dos filmes anteriores. Mas estas são pequenas janelas...

É. Laurent — A invenção das janelas em seus filmes é sempre surpreendente. É uma materialização do enquadramento como tal, uma mostra da janela como algo fundamental.

Ensinemo-nos

É. Laurent — Acho que o seu filme deveria ser exibido em todas as escolas de psicanálise e especialmente àqueles que cuidam de adultos ou de crianças que têm dificuldade com a fala, em casos de autismo e não somente..

N. Aviv — Os surdos não têm problemas com a linguagem.

É. Laurent – Sim, mas existem surdos autistas, do mesmo modo que se pode ser surdo e neurótico, surdo e psicótico. Digamos que os surdos tenham os mesmos problemas com a linguagem que os outros.

O uso original que eles fazem da montagem das telas transformadas em instrumentos – de uma interação muito mais sofisticada do que o selfie daqueles que, em nosso mundo, têm uma relação padronizada com a linguagem – pode dar muitas ideias a terapeutas para fazer contato com sujeitos que, eles mesmos, podem ter problemas com a linguagem de ordem um pouco diferente.

N. Aviv – Ouvi dizer que alguns autistas que lidaram com a língua de sinais foram capazes de dizer coisas que não poderiam dizer de outra forma. Crianças ouvintes, para as quais a linguagem é problemática, encontraram outra relação com a linguagem através da lalíngua de sinais.

O verbo contra o sinal

É. Laurent — O conflito entre a oralidade (obrigação dos surdos de aprenderem a falar) e a lalíngua dos sinais (modalidade do gesto) tem estado muito distante. O recente livro de um americano, Gerald Shea(1) (deficiente auditivo, não totalmente surdo) mostra, ao longo da história, alternância entre os períodos em que os surdos eram forçados a falar e aqueles em que lhes era permitido o livre acesso à língua dos sinais. Aprendemos em seu livro que a história de Helen Keller, surda e cega desde os 19 meses de idade (2018 é o quinquagésimo aniversário de sua morte) foi deliberadamente enfeitada a ponto de resvalar pelo falso. Muitos de seus escritos, como o conto “O Rei do Gelo”, que ela teria escrito aos onze anos, foram, parece, de autoria de sua tutora, Anne Sullivan. Sua autobiografia de 1903 é dedicada a Graham Bell “que ensinou os surdos a falar”. Ele mesmo impulsionou Helen Keller para uma maratona de conferências para matar, no nascedouro, a língua dos sinais nos Estados Unidos. Inventor do gramofone [do telefone, N.T.] e eugenista, ele se opunha ao uso da língua dos sinais e queria impedir que os surdos se reproduzissem entre si. Ele visava a sua regulamentação para evitar a criação de isolats [uma espécie de gueto, N.T.] de surdos. Ele, portanto, prejudicou muito a língua deles. Ela foi reintroduzida nos Estados Unidos por um americano que retornava da França após uma visita ao Instituto Saint-Jacques, local de transmissão da língua dos surdos desde 1755 graças ao Abade de l’Epée, que, no século XVIII, havia compreendido a sua importância e a sistematizou. Os americanos recuperaram assim a relação com o sinal.

N. Aviv — A língua americana de sinais tem, portanto, muita semelhança com a língua francesa de sinais, ao passo que não tem nenhuma relação com a língua britânica de sinais. Quer dizer que ela não passa pela fala, a língua de sinais não é uma tradução de línguas faladas. Por razões históricas, assim, a França exportou a língua francesa de sinais.

É. Laurent — Em seu filme, uma pessoa surda atesta que se impedia a comunicação por sinais no pátio da escola para continuar, além das horas de curso, o empenho para forçar a fala. Essa é a versão soft da interdição contemporânea. No livro de G. Shea, aprendemos que na Idade Média, para “abrir a palavra” dos surdos, colocavam brasas nas bocas deles. Em nome do texto sagrado, enunciando que “no princípio era o verbo”, era necessário que todos tivessem o verbo.

N. Aviv — Após o congresso de Milão, em 1880, a língua dos sinais foi proibida nas escolas de toda a Europa.

A gramática do corpo

É. Laurent - No dossiê de imprensa onde você apresenta o filme, você diz que Lacan se afastou explicitamente do vínculo entre linguagem e vocalização, mas que ele teria dito isso apenas uma vez, em 1963. No Seminário sobre a angústia, ele afirma: “Linguagem não é vocalização.”(2)

N. Aviv — Ele diz: “Existem outras maneiras além das vocais para receber a linguagem. Linguagem não é vocalização. Vejam os surdos”.(2)

É. Laurent — Eu acrescentaria que Lacan, desde o início de seu ensino, em 1954, em seu primeiro Seminário, faz referência à linguagem dos sinais. Ele faz referência a um tratado de Santo Agostinho, De Magistro, a um diálogo com seu filho de 17 anos, já um pequeno gênio, infelizmente falecido aos 19 anos. Esse tratado visa o que é linguagem.
Santo Agostinho alí se refere à língua dos sinais. R.P. Beirnaert, que expôs o texto no Seminário de Lacan, diz o seguinte: "Agostinho pergunta ao seu discípulo se examinou bem os surdos que comunicam por gestos com os congêneres. “E mostra que, nessa linguagem, não são somente as coisas visíveis que são mostradas, mas também os sons, os sabores etc”.(3) Lacan assinala: “Exemplos de dois signos que não são verbo – gestus e littera. Aqui, Santo Agostinho se mostra mais saudável que nossos contemporâneos; alguns dos quais chegam a considerar que o gesto não é de ordem simbólica, mas se situa, por exemplo, no nível de uma resposta animal. O gesto, portanto, faria objeção à nossa tese de que a análise se dá inteiramente pela fala. E os gestos do sujeito? Eles dizem. Ora, um gesto humano está do lado da linguagem e não da manifestação motora. Isso é evidente”.(4)

Lacan retoma o exemplo dos surdos que atestam que existem categorias de signos que não passam pela fala, em seu Seminário III sobre as psicoses: “É ainda mais simples se pensarmos no surdo-mudo, que é suscetível de receber um discurso por sinais visuais transmitidos por meio dos dedos, segundo o alfabeto surdo-mudo. Se o surdo-mudo ficar fascinado pelas lindas mãos de seu interlocutor, ele não registrará o discurso veiculado por essas mãos. Eu diria mais – o que ele registra, ou seja, a sucessão dos sinais, sua oposição sem a qual não há sucessão, será que se pode dizer que, propriamente falando, ele o vê?”(5) Assim como no primeiro Seminário, graças a Santo Agostinho, ele havia cortado o elo entre o sensorium da voz e a questão da troca de sinais, ele o corta aqui com a visão, ele finalmente só considera que “isso se vê”. Isso se percebe além de qualquer sensorium. Poder-se-ia dizer que é o corpo em toda a sua superfície que é mobilizado. A linguagem, na sua intenção de significação, causa aí impacto. Assim como a ênfase colocada no filme sobre o jogo do corpo inteiro, da “gramática do corpo”(6), como diz a linguista Wendy Sandler, é muito importante.

Do sinal desconectado do sensorium à instância da letra

Se Lacan acentua a desconexão do sensorium e do signo em seu Seminário sobre as psicoses, é porque esse ponto é crucial para a sua doutrina da alucinação. Quando ele desconecta a voz ou o sinal do sensorium, é para separar a “instância da letra” do phonè [fone: som do fonema, N.T.] e da visão. A voz afônica da alucinação é uma voz, mas não é um phonè [fone]. É uma voz mais próxima do gesto, ou da escrita, uma escrita que ocorre no corpo. Entendemos então o fundamento da querelazinha com Derrida para saber quem primeiro tirou o gramme [letra, N.T.] do phonè. Assinalemos a importância desses lembretes nos primeiros seminários sobre o papel da línguagem dos sinais.

“Esse tempo, no entanto, deveria parecer legítimo, a qualquer exame não prevenido da alucinação verbal, por não ser ela redutível, como veremos, nem a um sensorium particular, nem, sobretudo, a um percipiens, como aquele que lhe daria sua unidade.

De fato, é um erro tomá-la por auditiva por natureza, quando é concebível, em última instância, que não o seja em nenhum grau (surdo-mudo, por exemplo, ou em um registro não auditivo do soletrar alucinatório), mas sobretudo considerando-se que o ato de ouvir não é o mesmo, conforme vise a coerência da cadeia verbal, isto é, a sua sobredeterminação, a cada instante, pelo a posteriori de sua sequência, bem como à suspensão de seu valor, a cada instante, no advento de um sentido sempre pronto a uma remissão, ou conforme se acomode na fala à modulação sonora, a uma dada finalidade de análise acústica: tonal ou fonética, ou até mesmo de potência musical”.(7)

N. Aviv — Eles são surdos, mas não são mudos. Eles são apenas Surdos. Com um grande S. Eles reivindicam isso – como alguns afirmam serem Judeus com um grande J.

Tradução: Antonia Claudete Amaral Livramento Prado

1: Shea G., The language of light : a History of silent voices, Yale University Press, 2017.
2: Lacan J., O Seminário, livro 10, A angústia, (1962-1963), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005, p. 299.
3: Lacan J., O Seminário, livro 1, Os Escritos técnicos de Freud (1953-1954), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1986, p. 287.
4 : Ibid., p. 290.
5: Lacan J., O Seminário, livro 3, As psicoses (1955-1956), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1985, p. 158.
6: Cf. Grammar of the Body (GRAMBY) Interdisciplinary Research Project mené par la linguiste américaineisraélienne Wendy Sandler (Université de Haifa) et financé par le Conseil européen de la recherche (Union Européenne).
7: Lacan J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 538-39.

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