28 de fevereiro de 2012

LACAN COTIDIANO Nº 123 - PORTUGUÊS

Sábado 7 Domingo 8 janeiro 2012 09h30 [GMT+ 1

NÚMERO 123

Eu não teria perdido um Seminário por nada no mundo - PHILLIPE SOLLERS

Ganharemos porque não temos outra escolha - AGNÈS AFLALO

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Captura de tela 2012-02-25 às 21



A Crônica de Clotilde por C. Leguil

Um Método Perigoso de David Cronenberg

Promessas e derivas da psicanálise nos tempos dos primórdios

Saindo da sala de cinema onde eu acabara de ver o último filme de David Cronenberg, adaptado da peça de Christopher Hampton The Talking cure que aborda a relação tumultuada estabelecida entre Sabina Spielrein e Carl Gustav Jung, questionei-me como este filme seria recebido nos tempos atuais.

Deixando no ar a posição do cineasta, o jornal Le Monde intitula desta forma ao falar do filme: “Cronenberg mergulha na psicanálise”. O tema do filme conduz de fato a abordar a psicanálise a partir daquilo que constitui o tendão de Aquiles desde seu início, a saber, os efeitos da transferência, que Lacan descrevera como efeitos de fechamento do inconsciente e que são aqui exibidos em estado selvagem pelo viés da relação amorosa sadomasoquista entre Jung e uma de suas primeiras pacientes. Não se corre risco, de fora, de pensar então que este filme considera a psicanálise como um método de fato perigoso, tão perigoso a ponto de poder conduzir o psicanalista, ele próprio, a se ver ultrapassado pelo efeito de suas palavras, assim como Breuer foi capaz de fugir frente ao estado amoroso de Anna O.? Os adversários da psicanálise, não irão eles se apropriar do filme para poder incriminá-la, mostrando em que sentido a prática da psicanálise produz efeitos devastadores, abandonando os pacientes assim como os analistas a consequências imprevisíveis da cura pela fala?

E, contudo, é ao tratar a psicanálise a partir de seu núcleo central, o que constitui ao mesmo tempo seu ponto de fragilidade, que Cronenberg se apresenta ele próprio como um espírito sutil, partidário fervoroso das teorias freudianas e capaz de filmar encontros entre o inventor da psicanálise e seu discípulo suíço, os quais testemunham o valor da palavra e de seu poder. Pois aquilo que o cineasta logra demonstrar é também da ordem de uma tese que poderíamos qualificar de tese lacaniana. Assim como Lacan pôde demonstrar que não há resistência senão do analista, Cronenberg nos mostra em que sentido o fracasso do fim do tratamento de Sabina Spielrein tem suas raízes na resistência do próprio Jung. De fato, aparece após este filme que, se Jung resistiu tanto à teoria freudiana da libido, se ele buscou sob uma forma de misticismo conceber o inconsciente nas suas relações com a mitologia universal ao invés de privilegiar sua ancoragem no desejo recôndito do sujeito, é porque ele mesmo não queria saber nada sobre o seu próprio gozo. Seus argumentos contra a teoria sexual tomam um novo rumo quando colocados em perspectiva em relação à sua própria vida de homem atravessado pela demanda de amor de uma jovem mulher, que havia podido libertar de seus sintomas histéricos. Aquele que, de fato, não quer reconhecer a predominância da sexualidade na lógica do inconsciente é o mesmo que cede às suas próprias pulsões, tomando como amante sua antiga paciente e consentindo em se tornar novamente para ela aquele pai que lhe batia tanto para puni-la como para satisfazer a si próprio.Assim, esta mão brutal que ela era obrigada a beijar após cada cena de surra no pequeno quarto escuro, é a mesma que ela busca encontrar naquele mesmo homem que pôde libertá-la de uma parte de sua angústia. Apanhar do pai, como Freud mostrou, é também ser amada por ele... para melhor e para pior.

A psicanálise com Jung de fato parece então bem mais um método perigoso, pois o final da cura leva esta jovem mulher a esteacting-out que deixa o pobre Jung escravo daquilo que ele próprio havia criado. Impossível para ele, uma vez que ele consente em responder a esta demanda sadomasoquista, em reconhecer a dimensão da sexualidade na aventura analítica. Impossível para ele ainda perceber que ele entrara no fantasma da jovem mulher ao renunciar em dar-lhe significantes e preferir dar-lhe os golpes de chicote que ela acreditava buscar. Ambos perdidos neste impasse, não lhes resta outra coisa senão olhar para Viena a fim de se voltar a Freud...

É portanto o personagem de Freud que Cronenberg logra fazer reviver com brio e sutileza ao dirigir admiravelmente um Viggo Mortensen reinventado onde a palavra bem colocada e articulada remete verdadeiramente a alguma coisa do clima psicanalítico. Os encontros entre os dois homens mostram um Jung bastante preocupado em contradizer o mestre para melhor esquecer seu próprio sintoma e um Freud que sabe escutar e que responde senão dizendo a verdade, porém não-toda... Assim, face a um Jung que se serve um tanto quanto abundantemente de sua mesa na 19 Bergstrasse, em frente a sua mulher e seus filhos... Freud lhe responde vigorosamente “não se contenha de modo algum, minha família está habituada a este tipo de conversa psicanalítica”. Interpretando assim sua angústia como estando diretamente ligada à sexualidade, misturando o registro da pulsão oral ao do logos, o personagem de Freud criado por Cronenberg pratica o meio-dizer, o eufemismo, a ironia para assim introduzir Jung em seu próprio inconsciente. Este último que aparece de início no filme como aquele que vê na psicanálise um método experimental mais do que uma experiência subjetiva, representa, então, através de sua deriva a posição de semi-qualificado que se apropria do poder das palavras sem medir os efeitos sobre si e sobre os outros.

Através de sua arte, Cronenberg enfrenta ele também sua própria fascinação pelo gozo sadomasoquista que ele já havia retratado em Gêmeos, Mórbida Semelhança e em Crash – Estranhos Prazeres, e encontra aqui uma resposta à sua própria pergunta ao mostrar que a psicanálise é capaz de não fechar os olhos diante desse gozo. É então decididamente com Freud e contra Jung, nos mostrando em que sentido a psicanálise desempenha sua parte no que diz respeito ao amor e também no que diz respeito à pulsão de morte. Se a psicanálise é então um método perigoso, não podemos colocá-la nas mãos de qualquer um... mas se ela pode nos prometer outra coisa senão sombra, é que paradoxalmente somente a análise pode prevenir cada uma das derivas da psicanálise que são finalmente somente os efeitos inevitáveis do próprio Logos.


UMA VOZ

Poder do desejo, autoridade do sinthoma

Monique Amirault

“Num mundo democrático e esvaziado do homem

de exceção”, trata-se hoje de reconhecer a

posição de exceção de cada um, de querer isso – com

o que implica de dor”.

(JAM, julho 1997, Arcachon)

É sempre com a mesma emoção e o mesmo sentimento de respeito que me lembro do elogio de Lacan como mestre, feito, faz tempo, por J.-A. Miller. É um elogio que continua tendo valor de exemplo, atemporal, pois não remete aos padrões do tempo mas à estrutura do desejo: “ Lacan é um mestre, dizia ele. Não é um sábio, filósofo que se faz pela ordem do mundo (…) Sem moderação, sem abstenções, sem neutralidade. (…) Mestre é aquele que não teme o vizinho, (…) que não inveja a tudo e a todos. Mestre é aquele que não cede aos seus desejos e que assim é ele sozinho uma caravana passando.”

Hoje, as figuras da autoridade são zombadas; nós as menosprezamos, nós as pisoteamos. Estamos aguardando erros, passos em falso, e na falta de julgar suas ações, caçamos seus pequenos gozos. O mestre não tem mais autoridade. O que resta então desta figura quando todo poder estabelecido está impotente para revesti-la, quando nenhum aparelho tem peso para justificá-la, quando na maior parte do tempo, somente a insignificância do personagem ou a camisa de força do protocolo mantêm uma função fantoche promovida pela “comunicação”?

O tempo passou e o elogio citado, dirigido a Lacan, pode também ser dirigido hoje a quem o pronunciou ontem, J.-A. Miller, assim como a alguns outros, tais como Bernard-Henri Levy e aqueles que acompanham os psicanalistas em sua luta para que se mantenha no mundo a possibilidade de ex-sistir o inconsciente e que a autoridade que o sinthoma dá a cada um seja reconhecida em sua eficiência.

Estes têm em comum dividir a opinião em seus lugares, ter muitos amigos e também poderosos inimigos. Eles suscitam o ódio. Que eles riam disso, que eles briguem, que eles sofram por causa disso não os impede de seguir seu rumo. “O senhor quer que eu vá embora?”, ouvi J.-A. Miller dizer a um colega em quem ele interpretava a hostilidade mascarada, “... Pois bem, eu fico!”. No cinema St Germain-des-prés, em Paris, dia 23 de novembro do ano passado, na ocasião dessa conversa memorável com BHL sobre seu livro (La guerre sans l'aimer), o vimos emocionado pela estima do público e o reconhecimento de seu ser de exceção, habituado que está a receber, quase sempre, críticas odiosas. BHL, assim como Lacan e como J.-A. Miller, é um nome do real e “não se saberia escapar do risco do ódio por menos que se toque o real” (Jean-Pierre Klotz, LQ 101).

Eles têm também em comum, cada um em seu estilo, incomparável, uma abertura e uma curiosidade sempre nova, o que faz deles “mestres do saber”. A seu modo de pensar poderíamos aplicar estas palavras do filósofo Alain, que J.-A. Miller chegou a evocar: “Pensar, é dizer “não”, […] Não a quê? Ao mundo, ao tirano, ao pecador? Isto é somente a aparência. Em todos estes casos, é a ele mesmo que o pensamento diz não. Ele rompe o feliz consentimento. Ele se separa dele mesmo. Ele luta contra ele mesmo. Não há outra luta no mundo.”

E essa luta tem consequências políticas.

Eles têm ainda em comum o fato de não recuar diante do ato quando este se impõe diante deles, consumado ao preço do tempo da angústia e de sua superação (que Anaëlle Lebovits-Quenehen mostrou tão bem em seu discurso dirigido a BHL em 23 de novembro do ano passado). Com eles, o instante de ver se precipita no momento de concluir e suas consequências, em ato.

Em outras palavras, eles têm em comum um desejo que os guia e ao qual eles não cedem. Eles querem o que desejam. Benoît Jacquot, este lacaniano – como se intitula – que nos é caro, disse numa entrevista recente, “Eu nunca tive dúvidas a respeito de meu talento”. Ele relata “o encontro mais impressionante” de sua vida, com André Breton, que ele ousa abordar aos 14 anos e que o recebe em seu atelier. Em um dos livros que o jovem lhe mostra, André Breton escreve essa dedicatória: “A Benoît Jacquot, para seu espírito tão perigoso”.

E mesmo assim, esses espíritos tão perigosos não «acreditam um no outro», não se apresentam como modelo mas dão exemplo. Eles não estão inflados de um narcisismo « especular » como o que todavia certas pessoas lhes atribuem. Seu narcisismo é sobretudo da ordem daquilo que Lacan destacou e colocou em relação com o sinthoma e que consiste em se reconhecer no sintoma, em saber manipulá-lo, diz Lacan, e se virar tão bem quanto o homem se vira com sua imagem. E esses espíritos perigosos possuem a verdadeira modéstia daqueles que conhecem seu sintoma, aprenderam a usá-lo, a arcar com as consequências e a responsabilidade. Olham-se em suas próprias imagens ? Seus gozos originais fazem-se ver? O que se lhes atribui, parece, ao que seria do narcisismo é, neles, a ausência de dúvidas, de inibição, de dúvida paralisante, de gozo da impotência. Eles não se veem pelo “olhar dos outros”. Não se encontra neles essa falsa modéstia que somente mascararia a enfatuação do eu. Não é isso que lhes interessa, mas a causa que os habita e que eles defendem, que transmitem com paixão, causa viva e ativa, real diante do qual eles não recuam.Independente disso, o narcisismo alegado deles não é o que os ocupa e nem mais o que nos ocupa.

Ah, como gostaríamos que ficassem quietos, esses agitados ! Que o psicanalista continue se dedicando à escuta muda das dores atemporais no segredo de seu consultório, que o filósofo se preste à escrita de suas especulações filosóficas de sua « concepção de mundo » ; como gostaríamos que “com suas toucas de dormir e roupões surrados”, ele se ocupasse em “tapar os buracos do edifício do mundo” (Freud cita Henri Heine, 1933, “De uma concepção do universo”).

Testemunha disso é a resposta de Alain Juppé, questionado na France Inter dia 15 de dezembro do ano passado, sobre o engajamento de BHL na Líbia, e que enunciou com prudência : “Eu tenho total respeito ao trabalho... de escrita dos intelectuais”. E Daniel Salvatore Schiffer, filósofo, de escrever em Marianne (2 de agosto de 2011), sob o título “BHL na Líbia ou o narcisismo guerreiro”: “eu sempre pensei, quanto a mim, que um filósofo digno desse nome, ser para quem a sabedoria está inscrita no âmago de sua essência, assim como indica sua etimologia, tinha como vocação imperiosa, não fazer a guerra – o que é mais o credo dos pensadores de direita – mas, pelo contrário, procurar propagar indefinidamente, o tanto quanto conseguir, a paz entre os homens”. Daniel Salvatore Schiffer não poupa em nada o “filósofo engajado”, BHL, desde seu “ego hipertrofiado que se revela inversamente proporcional à sua humildade intelectual”, até uma “estratégia midiática” e um “marketing editorial” que se revelam mais determinantes, - infelizmente para o iluminismo da razão, inclusive até para o futuro do pensamento - do que a própria obra! E Schiffer procura qualificar esses “intelectuais”, tais como BHL, de “intelectual, duvidosamente teórico (o que seria positivo), mas sim especular, para não dizer crepuscular porque é essa imagem inadequadamente reluzente que domina a partir de agora, tal qual a mais falaciosa ilusão de ótica, sobre a obra.”

BHL, JAM, não se contentam com um “no limite do que se pode fazer”; eles não se satisfazem com especulações. Eles tomam a palavra, despertam a “opinião esclarecida”; eles agem, mobilizam a mídia, onde não hesitam em procurar apoio, e às vezes levantam montanhas. “Os filósofos? Eles renunciaram em massa, escreveu J.-A. Miller dirigindo-se ao leitor do Nouvel Ane. O silêncio dos melhores é ensurdecedor. Na degenerescência da filosofia analítica, muitos foram para o lado inimigo. Quem salva a honra? Na linha de frente, Bernard-Henri Levy, Philippe Sollers, meus amigos, protetores de LNA.”

Por mais que Lacan esteja sendo cada vez mais evocado, que sua presença nos apareça cada vez mais como efetiva e inevitável, J.-A. Miller defendeu recentemente (dia 10 de setembro do ano passado na livraria Mollat, em Bordeaux) que “O século não é mesmo lacaniano, o século é anti-lacaniano, disse ele. É anti-lacaniano porque é o século da avaliação […], é o século do quantitativo, das TCC, das assim chamadas neurociências que são neurotécnicas de sugestão. Então a partida está longe de estar ganha. Estamos em combate.”

Quantas vezes lemos ou ouvimos chamarem JAM, assim como BHL, de midiáticos – e não é certo que isso seja um elogio! Para BHL “a arte da filosofia só é válida se for uma arte da guerra...” e a “estratégia midiática” que tanto criticam é para ele um dos meios necessários para se fazer ouvir e ganhar a batalha. Quanto a JAM, ele definiu Le Nouvel Ane não como “o instrumento de uma contemplação, o meio de um deleite intelectual” mas como “um órgão de combate”.

E é a eles que se aplica o significante de “corajoso”, retomado por Cynthia Fleury, também filósofa engajada, em seu livro O fim da coragem, a estes que sabem “a fecundidade do acaso” e arriscam “a solidão do ato corajoso e o isolamento em relação aos outros”, uma vez que não há coragem sem ato.

JAM, BHL, Philippe Sollers, Cynthia Fleury têm assim em comum servirem de espelho à covardia de cada um. Que eles possam “salvar a honra” e “causar vergonha”, ou seja, visar “um esforço em restituir a instância do significante-mestre” (J-A Miller, “Nota sobre a vergonha”).

“Aquilo que se chama desejo é o suficiente para que o sentido da vida não seja o de produzir um covarde”, escreveu Lacan em 1962. (“Kant com Sade”). Cinquenta anos mais tarde, essa frase ressoa de forma renovada e se revela como uma máxima bem vinda para os tempos presentes.


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LEITURA DE UMA EXPOSIÇÃO

“Inquietantes Estranhezas” Solenne Albert

Até 15 de janeiro de 2012, o museu de Belas-artes de Nantes apresenta, na capela do Oratório, a exposição “Inquietantes estranhezas”. Baseado num princípio de releitura das coleções do museu, as obras expostas foram reunidas a partir de um ponto em comum : “o singular, o insólito, o perturbador, o dificilmente reconhecível, ou até mesmo o assustador.” – tomando-se a hipótese de que a inquietude pode surgir da ficção, desvendando os “terrores primitivos” humanos reprimidos. O conceito freudiano é usado como um “utensílio metodológico” para interrogar “a força do paradoxo, a contradição, a tensão e a ambivalência das obras.”

Na primeira sala, “a tela e o reflexo”, o espelho é usado como “potência de transfiguração do real”. Na segunda sala, “o inferno e a doença”, a dor e a punição oferecem a imagem do eterno recomeço e do que – no coração do humano – divide e distribui : o ponto de gozo opaco e insuportável. Na sala “o sonho e o imaginário”, a magnífica “aparição do anjo a São José” de Georges de la Tour reflete-se nas “folhas mortas” de Alexandre Chantron ; as ninfas acabam de morrer, o sono aparece em sua face mortífera e o olhar não encontra outra escapatória : ele bate de frente, por onde quer que ele vá, no real. A sala “A morte, o crime e a metamorfose” se apresenta como reflexo de nossos terrores infantis tornados inconscientes : A mulher existe e é assassina (“Judith que acaba de cortar a cabeça de Holofernes” de Giovanni Battista Spinelli ou “Salomé” de Jean Brenner). Na sala “rostos e máscaras”, os retratos hipnotizam, a identidade desaparece. Sob a máscara: um grito, lúgubre e infinito. Na sala “a sombra e o fantástico”, a alegoria da caverna, representada por Hugues Reip, é também metáfora do inconsciente. A última sala : “a interpretação e o real” é um questionamento sobre nossa percepção do real. Como distinguir real e realidade ?

Ao sair dessa exposição, um certo mal-estar se traduziu sob a forma de uma pergunta : essa exposição saberia suscitar – naqueles que pouco o conhecem– a vontade de ler o texto de Freud ? Em seu texto, Inquietante Estranheza, Freud diz que não ficaria impressionado “em descobrir que a própria psicanálise, pelo fato de ser empregada para trazer à luz essas forças ocultas (geheim), tenha se tornado estranhamente inquietante para muita gente”.

Essa exposição não indica – de fato – o que a aventura analítica permite de descobertas inéditas que vão ao encontro de nossos fantasmas inconscientes e de nossos terrores infantis. Ela não diz que uma análise consiste, justamente, em se libertar dessas forças animistas que são as tantas figuras do horror.

Sair do espelho

Desta “área específica da estética”, que suscita a angústia e o terror, Freud desenhou os contornos a partir, primeiramente, de uma análise etimológica precisa e cativante que torna, assim como a metáfora da luva virada, o unheimlichkeit em heimlich. O unheimlichkeit é ao mesmo tempo o desconhecido e o familiar, o que fica na sombra e o que aparece ; o que é impenetrável e fascinante.

Freud se baseia no conto de E.T.A. Hoffman para traduzir a indizível impressão e detectar nela seu momento de emergência. Nesse conto, as figuras fantasmáticas produzem horror porque elas nos trazem à memória “a angústia infantil e aterrorizante que é a de perder ou danificar os olhos.” (p. 231) Substituto da angústia de castração indizível, o conto faz emergir essa verdade esquecida : “o homem tem a capacidade de observar a si mesmo”, o olho é espelho.

inquietantes11400O tema do duplo, tal como Freud o analisa neste texto, contém “um desmentido eficaz da pulsão de morte”, pois, antes de ser inquietante, o Outro era uma “garantia de sobrevivência (…) contra o desaparecimento do eu, uma recusa eficaz da pulsão de morte”. Assim, o tema do desdobramento que suscita “a inquietante estranheza” era também o que permitia se salvar da aniquilação. É então num segundo momento – segundo em relação à criação do superego – que “o duplo torna-se uma imagem de terror”.
O que há de estranhamente inquietante no retorno do mesmo, tem sua fonte nessa parte pulsional, estranha a si mesma. É essa compulsão interior de repetição que é sentida como estranhamente inquietante. O olhar pode assim tomar formas de superstição inquietante, por exemplo a do “mau olhado” pois “tais movimentos inquietantes se traem pelo olhar”.

O prefixo “un” é então a marca do recalque. “Um efeito de inquietante estranheza se produz com frequência e facilidade, quando a fronteira entre a fantasia e a realidade está apagada, quando se apresenta a nós como real algo que até então havíamos considerado como fantástico(...).”
Mas essa exposição não permite perceber os momentos de witz, inerentes à experiência do inconsciente no qual aparece o “sentimento de cômico” ligado a essa “volta não intencional do mesmo”; no momento em que acontece, em nossa vida, “alguma coisa que parece trazer uma confirmação dessas antigas convicções que havíamos descartado.”

Do inquietante à causa do desejo

Com Freud, Lacan percorre inversamente esse caminho que vai do unheimlich ao heimlich, e, fazendo isso, ele abre uma nova via ao desejo, a partir da angústia. O que angustia ? Qual é o objeto, suscetível de produzir esse “afeto que não mente” e que, contudo, erra ao se dizer ?

Em seu Seminário X, Lacan correlaciona a dimensão da inquietude à da angústia e “revifica toda a dialética do desejo” ao introduzir “uma nova clareza quanto à função do objeto em relação ao desejo.” (p. 265)

Se o desejo está “ligado à imagem, é função de algum corte sofrido no campo do olho.” (p. 265), o espelho é “esse campo do Outro no qual deve aparecer pela primeira vez, senão o a, pelo menos seu lugar – enfim, a mola radical que faz passar do nível da castração à miragem do objeto do desejo.” (p.265)
Nessa exposição, a inquietante estranheza é abordada do ponto de vista da ilusão cristã, ou seja, a partir da tentativa de provocar a angústia no Outro. Ela deixa intocada a inquietante estranheza do ponto de vista do budismo : o desejo é ilusão, não há visada sobre nada e “se esse vaso se torna angustiante, é para isto que o a vem preencher pela metade o vazio nele formado pela castração original.” (p. 238).
“Se há um objeto do seu desejo, ele não é senão você mesmo.”

Através do “tema do duplo”, que atrai e fascina, o sujeito busca o que há, de si mesmo, perdido. Essa parte, para sempre perdida, é o que ele busca encontrar no espelho. Mas falta uma mola: a que faz passar o a, do nível da castração, à miragem do objeto de desejo e à causa que anima.


O objeto a não é especular

Essa simetria entre o ponto de angústia e o ponto de desejo, que Lacan aborda em seu Seminário X, permite uma abertura que não aparece nessa exposição. Não aparece a relação da angústia como sendo o campo em que a morte se liga estreitamente a renovação da vida, pois “o objeto a é o que falta, não é especular, não é apreensível na imagem.” (p. 294)

O que esta exposição não diz, é que a “operação analítica efetua uma retificação do desejo”. Ela permite passar do trágico ao cômico, do aterrorizante ao Witz, da angústia à causa do desejo.

A inquietante estranheza, abordada sob o ponto de vista daquilo que vem preencher o vazio, desconhece o objeto a em sua dimensão de ausência e de inapreensível, ela esquece que, o que faz de uma psicanálise uma aventura única “é a procura doagalma no campo do Outro.” (p. 390) e que “a impossibilidade para o sujeito de encontrar, nele mesmo, sua causa no nível do desejo”. (p. 381) é o que o anima, que o torna vivo.

A angústia surge quando algo aparece “no lugar da falta, no lugar que deveria ficar vazio.” (p.53)

Assim, nesses quadros, a morte – enquanto real – ocupa o lugar do que deveria ficar vazio, o da castração imaginária, já que o real “é aquilo que nada falta”.


٠Vamos lá!

Anne-Charlotte Gauthier informa :

Todos os meus votos para cada um de vocês para esse novo ano. E para todos nossos amigos leitores aqui está o anúncio do primeiro encontro de 2012 da biblioteca da ECF com Clarisse Herrenschmidt, pesquisadora do CNRS, membro do laboratório de antropologia social do Collège de France, especialista em história da escrita, e nosso colega Éric Laurent. Com eles seguindo “A odisseia do signo no Ocidente”, teremos novas perspectivas sobre o simbólico no século XXI.Cordialmente.

Clarisse Herrenschmidt e Éric Laurent

O simbólico no século XXI : A odisseia do signo »

à propos du livre de celle-ci, Les trois écritures, langue, nombre, code, Paris, Gallimard, 2007

quarta-feira 11 de janeiro de 2012 às 21h15

Bibliothèque de l’École de la Cause freudienne

1, rue Huysmans 75006 Paris

Maiores detalhes em Babel n°12 ao teclar: ce lien.

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As propostas de textos para publicação no Lacan Cotidiano devem ser endereçadas por e- mail ou diretamente no site:www.lacanquotidien.fr clicando em "proposez un article" [proponha um artigo], em arquivo Word Fonte: Calibri Tamanho dos caracteres: 12 Entrelinhas: 1,15 Parágrafo: Justificado Notas de rodapé: mencionar no corpo do texto e, no final deste, fonte 10


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Tradução: Carla Cristine Bonadio Audi

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